domingo, 6 de janeiro de 2013

Prisão de Cecília Meireles


Prisão

Nesta cidade quatro mulheres estão no cárcere.
Apenas quatro.
Uma na cela que dá para o rio, outra na cela que dá para o monte, outra na cela que dá para a igreja e a última na do cemitério ali embaixo.  Apenas quatro.

... Quarenta mulheres noutra cidade, quarenta, ao menos, estão no cárcere.
Dez voltadas para as espumas, dez para a lua movediça, dez para pedras sem resposta, dez para espelhos enganosos.
Em celas de ar, de água, de vidro estão presas quarenta mulheres, quarenta ao menos, naquela cidade.

Quatrocentas mulheres, quatrocentas, digo, estão presas:cem por ódio, cem por amor, cem por orgulho, cem por desprezo em celas de ferro, em celas de fogo, em celas sem ferro nem fogo, somente de dor e silêncio. Quatrocentas mulheres, numa outra cidade,quatrocentas, digo, estão presas.

Quatro mil mulheres, no cárcere, e quatro milhões – e já nem sei a conta, em lugares que ninguém sabe, estão presas, estão para sempre sem janela e sem esperança, umas voltadas para o presente,
outras para o passado, e as outras para o futuro, e o resto –  o resto, sem futuro, passado ou presente,
presas em prisão giratória, presas em delírio, na sombra, presas por outros e por si mesmas, tão presas que ninguém as solta, e nem o rubro galo do sol nem a andorinha azul da lua podem levar qualquer recado à prisão por onde as mulheres se convertem em sal e muro.
 
Cecília Meireles


sábado, 9 de junho de 2012

"HAVIAM" COISAS - Por Fernanda Torres.

"HAVIAM" COISAS - Por Fernanda Torres.
Crônica publicada em junho/2012 na revista Veja Rio.

Felipe Pinheiro, meu saudoso amigo, costumava fazer uma brincadeira que adoro repetir sobre a epidemia do “pra mim fazer”. Quando um “pra mim andar” ou “pra mim comer” lhe feria os ouvidos, meu compadre franzia as sobrancelhas e repetia, entre o irritado e o desesperado: “Mim não faz nada! Mim não anda! Mim não come! Mim não faz coisa nenhuma!”.

Existem infindáveis “mins” realizando façanhas por aí, com o risco, inclusive, de ser aceitos pela norma culta. Se os que defendem que a linguagem já nasce com o homem estiverem corretos, e o neném berrar na sala de parto seguindo a concordância, o “pra mim errar” deve ser um defeito grave de fabricação.

Meu mim não age. É dos poucos orgulhos que eu tenho do meu português. Tenho um conhecimento pífio de gramática, escrevo de ouvido, herança da escola experimental. Passei anos com medo de desejar um bom-dia por escrito ao João Ubaldo Ribeiro. “Será que tem hífen?”, eu pensava. Um bloqueio assustador, como se estivesse prestando um exame. Só usava frases curtas, quase bilhetes e, mesmo assim, no sufoco.

Recentemente, eu me correspondi com um conterrâneo do Ubaldo igualmente culto e amante da última flor do Lácio. Fui bem, consegui desenvolver um raciocínio aceitável, mas, lá no fim do último parágrafo da caudalosa epístola, escrevi que “haviam incongruências”. As incongruências não importam, já o haviam…

“No Brasil, usamos o verbo ter no lugar do haver. ‘Tem um buraco enorme do lado esquerdo.’ Pois bem, mesmo que fossem dois (ou sete) buracos, o verbo permaneceria no singular: ‘tem sete buracos enormes do lado esquerdo’. Igual a ‘há sete buracos enormes do lado esquerdo’. Até aí, tudo bem, ninguém erra se usar o verbo haver: ninguém diz ‘hão sete buracos enormes’. Mas, se vai para o passado, neguinho fica com medo de não fazer a concordância e flexiona o verbo: ‘haviam sete buracos’. O certo é ‘havia sete buracos’. Nem ‘houveram sete assaltos’ (saí do buraco porque não dá para fazer uma frase convincente com buracos e o verbo no pretérito perfeito: houve, houveram; o imperfeito é havia, haviam).

O certo é ‘houve sete assaltos’. Ou ‘teve sete assaltos’. Claro que com o verbo ter você vai encontrar situações de flexão correta: ‘Os bancos tiveram sete assaltos este mês’. Porque aí o sujeito da frase é ‘os bancos’. É como dizer ‘os bancos sofreram sete assaltos’. Mas dizer que meramente houve assaltos não implica ‘assaltos’ ser o sujeito. Houve o que houve, há o que há, havia o que havia; o verbo haver aí é impessoal. O verbo ter, quando o substitui em casos iguais, também.”

Agradeci de joelhos a paciência e a aula, mas o lodaçal piorou. E existe? Existem sete buracos? Ou existe sete buracos? Quem existe é o buraco, então, deve ser existem. E os dias? “Hoje é 15 de setembro”? Ou “são 15”? As horas eu sei que são. E faz? É impessoal ou não? “Fazem quinze anos” ou “faz quinze anos”? É faz. A razão, segundo fui informada, beira a filosofia: é porque o tempo é.

O pediatra do meu filho tinha 14 anos quando enfrentou uma sequência de zeros distribuída democraticamente pelo professor belga de matemática do Santo Inácio. O pai recorreu a aulas particulares com um conterrâneo do mestre. O europeu mal-humorado explicou que só existem quatro operações relevantes: soma, subtração, multiplicação e divisão, depois, escreveu na lousa: 2+2, 2-2, 2×2 e 2:2 e pediu que o aluno resolvesse. Quando o rapaz terminou, o professor aconselhou um reforço em português. A dificuldade estava na leitura do enunciado dos problemas. Todas as falhas de compreensão pertenciam à lógica.

Nesse quesito, português só perde para a física em matéria de dificuldade.

O pouco que fixei, hoje, só me serve para entregar a idade.

A última reforma ortográfica dizimou os acentos. O computador conserta, mas eu redigito o agudo do “o” de “jóia” e “clarabóia”. Não aguento “joía” e “claraboía”. Voo, também, não tem mais circunflexo, virou “voo”. E não se distingue mais “história” de “estória”, uma sutileza que me agradava imenso.

Depois de tanta ignorância confessa, só não peço demissão por medo de redigir a carta.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Namore uma garota que lê

 NAMORE UMA GAROTA QUE LÊ

Namore uma garota que gasta seu dinheiro em livros, em vez de roupas. Ela também tem problemas com o espaço do armário, mas é só porque tem livros demais. Namore uma garota que tem uma lista de livros que quer ler e que possui seu cartão de biblioteca desde os doze anos.

Encontre uma garota que lê. Você sabe que ela lê porque ela sempre vai ter um livro não lido na bolsa. Ela é aquela que olha amorosamente para as prateleiras da livraria, a única que surta (ainda que em silêncio) quando encontra o livro que quer. Você está vendo uma garota estranha cheirar as páginas de um livro antigo em um sebo? Essa é a leitora. Nunca resiste a cheirar as páginas, especialmente quando ficaram amarelas.

Ela é a garota que lê enquanto espera em um Café na rua. Se você espiar sua xícara, verá que a espuma do leite ainda flutua por sobre a bebida, porque ela está absorta. Perdida em um mundo criador pelo autor. Sente-se. Se quiser ela pode vê-lo de relance, porque a maior parte das garotas que leem não gostam de ser interrompidas. Pergunte se ela está gostando do livro.

Compre para ela outra xícara de café.

Diga o que realmente pensa sobre o Murakami. Descubra se ela foi além do primeiro capítulo da Irmandade. Entenda que, se ela diz que compreendeu o Ulisses de James Joyce, é só para parecer inteligente. Pergunte se ela gosta ou gostaria de ser a Alice.

É fácil namorar uma garota que lê. Ofereça livros no aniversário dela, no Natal e em comemorações de namoro. Ofereça o dom das palavras na poesia, na música. Ofereça Neruda, Sexton Pound, cummings. Deixe que ela saiba que você entende que as palavras são amor. Entenda que ela sabe a diferença entre os livros e a realidade, mas juro por Deus, ela vai tentar fazer com que a vida se pareça um pouco como seu livro favorito. E se ela conseguir não será por sua causa.

É que ela tem que arriscar, de alguma forma.
Minta. Se ela compreender sintaxe, vai perceber a sua necessidade de mentir. Por trás das palavras existem outras coisas: motivação, valor, nuance e diálogo. E isto nunca será o fim do mundo.

Trate de desiludi-la. Porque uma garota que lê sabe que o fracasso leva sempre ao clímax. Essas garotas sabem que todas as coisas chegam ao fim. E que sempre se pode escrever uma continuação. E que você pode começar outra vez e de novo, e continuar a ser o herói. E que na vida é preciso haver um vilão ou dois.

Por que ter medo de tudo o que você não é? As garotas que leem sabem que as pessoas, tal como as personagens, evoluem. Exceto as da série Crepúsculo.

Se você encontrar uma garota que leia, é melhor mantê-la por perto. Quando encontrá-la acordada às duas da manhã, chorando e apertando um livro contra o peito, prepare uma xícara de chá e abrace-a. Você pode perdê-la por um par de horas, mas ela sempre vai voltar para você. E falará como se as personagens do livro fossem reais – até porque, durante algum tempo, são mesmo.

Você tem de se declarar a ela em um balão de ar quente. Ou durante um show de rock. Ou, casualmente, na próxima vez que ela estiver doente. Ou pelo Skype.

Você vai sorrir tanto que acabará por se perguntar por que é que o seu coração ainda não explodiu e espalhou sangue por todo o peito. Vocês escreverão a história das suas vidas, terão crianças com nomes estranhos e gostos mais estranhos ainda. Ela vai apresentar os seus filhos ao Gato do Chapéu [Cat in the Hat] e a Aslam, talvez no mesmo dia. Vão atravessar juntos os invernos de suas velhices, e ela recitará Keats, num sussurro, enquanto você sacode a neve das botas.

Namore uma garota que lê porque você merece. Merece uma garota que pode te dar a vida mais colorida que você puder imaginar. Se você só puder oferecer-lhe monotonia, horas requentadas e propostas meia-boca, então estará melhor sozinho. Mas se quiser o mundo, e outros mundos além, namore uma garota que lê.

Ou, melhor ainda, namore uma garota que escreve.

Texto original: Date a girl who reads – Rosemary Urquico
Tradução e adaptação – Gabriela Ventura
La lectrice (A leitora)
óleo de Jean-Honré Fragonard
1770_1772

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Reforma Ortográfica por Cynthia Feitosa

Eis aqui um programa de cinco anos para resolver o problema da falta de autoconfiança do brasileiro na sua capacidade gramatical e ortográfica (além dos ignorantes, também vai servir pra aqueles que escrevem aquela língua horrível da internet...).

Em vez de melhorar o ensino, vamos facilitar as coisas, afinal, o português é difícil demais mesmo. Para não assustar os poucos que sabem escrever, nem deixar mais confusos os que ainda tentam acertar, faremos tudo de forma gradual.

No primeiro ano, o "Ç" vai substituir o "S" e o "C" sibilantes, e o "Z" o "S" suave. Peçoas que açeçam a internet com freqüênçia vão adorar, prinçipalmente os adoleçentes. O "C" duro e o "QU" em que o "U" não é pronunçiado çerão trokados pelo "K", já ke o çom é ekivalente. Iço deve akabar kom a konfuzão, e os teklados de komputador terão uma tekla a menos, olha çó ke koiza prátika e ekonômika.

Haverá um aumento do entuziasmo por parte do públiko no çegundo ano, kuando o problemátiko "H" mudo e todos os acentos, inkluzive o til, seraum eliminados. O "CH" çera çimplifikado para "X" e o "LH" pra "LI" ke da no mesmo e e mais façil. Iço fara kom ke palavras como "onra" fikem 20% mais kurtas e akabara kom o problema de çaber komo çe eskreve xuxu, xa e xatiçe. Da mesma forma, o "G" ço çera uzado kuando o çom for komo em "gordo", e çem o "U" porke naum çera preçizo, ja ke kuando o çom for igual ao de "G" em "tigela", uza-çe o "J" pra façilitar ainda mais a vida da jente.

No terçeiro ano, a açeitaçaum publika da nova ortografia devera atinjir o estajio em ke mudanças mais komplikadas serão poçiveis.O governo vai enkorajar a remoçaum de letras dobradas que alem de desneçeçarias çempre foraum um problema terivel para as peçoas, que akabam fikando kom teror de soletrar. Alem diço, todos konkordaum ke os çinais de pontuaçaum komo virgulas doispontos aspas e traveçaum tambem çaum difíçeis de uzar e preçizam kair e olia falando çerio já vaum tarde.

No kuarto ano todas as peçoas já çeraum reçeptivas a koizas komo a eliminaçaum do plural nos adjetivo e nos substantivo e a unificaçaum do U nas palavra toda ke termina kom L como fuziu xakau ou kriminau ja ke afinau a jente fala tudo iguau e açim fika mais faciu. Os karioka talvez naum gostem de akabar com os plurau porke eles gosta de eskrever xxx nos finau das palavra mas vaum akabar entendendo. Os paulista vaum adorar. Os goiano vaum kerer aproveitar pra akabar com o D nos jerundio mas ai tambem ja e eskuliambaçaum.

No kinto ano akaba a ipokrizia de çe kolokar R no finau dakelas palavra no infinitivo ja ke ningem fala mesmo e tambem U ou I no meio das palavra ke ningem pronunçia komo por exemplo roba toca e enjenhero e de uzar O ou E em palavra ke todo mundo pronunçia como U ou I, i ai im vez di çi iskreve pur ezemplu kem ker falar kom ele vamu iskreve kem ke fala kum eli ki e muito milio çertu ? os çinau di interogaçaum i di isklamaçaum kontinuam pra jente çabe kuandu algem ta fazendu uma pergunta ou ta isclamandu ou gritandu kom a jenti e o pontu pra jenti sabe kuandu a fraze akabo. Naum vai te mais problema ningem vai te mais eça barera pra çua açençaum çoçiau e çegurança pçikolojika todu mundu vai iskreve sempri çertu i çi intende muitu melio i di forma mais façiu e finaumenti todu mundu no Braziu vai çabe iskreve direitu, ate us jornalista, us publiçitario, us adivogado, ate us pulitiko i u prezidenti! Olia ço ki maravilia.

A autora é Cynthia Feitosa e foi publicado originalmente no blog CynCity. Este post foi publicado originalmente em 05/12/05.